Foto: Gabriel Junqueira
A árvore pintada na parede atrás do altar era muito maior do que a santa, que tinha a seu lado um castiçal de três velas e devia medir menos de um metro. Já a árvore ia até o alto do pé direito da construção e seus galhos se espalhavam pelos dois lados da parede. Olhando da calçada do outro lado da rua, através da porta e das duas janelas da fachada, os braços abertos da santa pareciam nos apresentar a árvore, que a cobria e contornava, como se fosse o céu, o firmamento estrelado.
Lá dentro seis devotas rezavam a novena nuns bancos tipo de igreja só que pequenos, para poderem caber naquela casinha simples da praça da vila do Capão, no coração da Chapada Diamantina, interior da Bahia, por onde andei zanzando pouco antes dessa pandemia começar. Do outro lado da praça a igreja oficial estava destelhada e com a parede da frente desaprumada e escorada, daí aquela igrejinha improvisada; a árvore já deveria estar pintada ali para função anterior que aquela casa exercera, possivelmente uma loja ou um ponto para se marcar passeios com guia às cachoeiras.
De modo que as beatas se ajoelhavam e diziam tende piedade de nós com os olhos levantados para os galhos e as folhas, pediam o pão nosso de cada dia nos dai hoje diante das vagens. A beleza da cena ainda é maior por ela ocorrer na praça de um pequeno povoado que fica dentro de um vale cercado por formações de arenito que há milhões de anos foi o fundo do mar - antes de existir gente, antes de gente achar que Deus é à sua imagem e semelhança.
As igrejas sempre procuraram a grandiosidade da arquitetura para nos remeter ao mistério, mas na circunstância atual rezar diretamente diante da árvore é um gesto de muito mais força. Duas semanas antes de ver a cena sacra no Capão assisti a uma outra em Jericoacoara, litoral do Ceará. Ali, numa bonita igreja toda de pedra em cantaria, com pouquíssimos fiéis na missa das sete de domingo, o padre dizia que a igreja católica é o repositório da verdade, ao contrário de “seitas que existem por aí”. A menos de um quilômetro dali, em cima de uma duna, cerca de 40 pessoas sentadas em silêncio viam o sol se por no mar.
A vilazinha do Capão e as casas que se espalham pelo vale lembram um pouco Visconde de Mauá de umas décadas atrás, com um povo da terra misturado a um povo alternativo, muitos estrangeiros, sonhando com uma vida em contato com a natureza. O fato de o Capão estar dentro do Parque Nacional da Chapada Diamantina favorece a preservação. Muita comida natural, iniciativas culturais, uma escola de circo, uma boa biblioteca, tudo cuidado por gente jovem e idealista.
A cultura e os nomes indianos estão por toda a parte. Ajudam a matar nossa sede de estado de graça, embora também seja possível apurar o espírito com os nomes de João, Manoel, Rosária ou Sinésio, mais afeitos às almas de Resende e Barra Mansa, que são cidades sagradas mesmo que não nos banhemos em grupos nas águas do rio Paraíba, de onde não devêssemos talvez nem comer os peixes, apesar de um eletricista morador do final da Alfredo Whately, pra lá da igreja de São Sebastião, que pesca no fundo de sua oficina, objetar que se o peixe ainda está vivo é sinal de que a água não está tão ruim assim, e que a gente ainda joga ele na gordura quente e toma uma pinga junto.
Sim, o Paraíba é tão sagrado quanto o Ganges, e a Mantiqueira tanto quanto as montanhas do Nepal. Tivemos até o nosso sadhu aqui em Resende. Aos moradores locais mais recentes, chegados com o boom industrial das últimas décadas, cabe falar sobre o Jorge, um pseudomendigo que até a década de 80 do século passado morou ali para os lados da Santa Casa, num barraco de um terreno baldio. Era o mais cristão dos resendenses, um despossuído indiscutível.
O Jorge não pedia dinheiro. Tinha a confiança dos vizinhos e vivia de fazer pequenos serviços de entrega, depósitos bancários, pagamentos e compras para a vizinhança, sempre descalço, de banho tomado, sem camisa, com um saco de aniagem sobre o dorso. Ele na fila do banco era uma beleza de se ver. Seus olhos eram claros e sorriam pra gente se provocássemos o cumprimento. Não falava quase nada, a não ser quando lhe acometia a vontade de movimentar um pouco a cidade e, da porta de um comércio concorrido, anunciava alto – e depois vazava rápido – que fulano morreu ou que sicrano está muito mal em casa, invenções da cabeça dele.
Pois bem: reza a lenda que o Jorge era filho de uma família bem de vida do Alto dos Passos. Da varanda de sua casa se descortinava toda a beleza da Mantiqueira – e esse posicionamento residencial foi-lhe fatal, aguçando sua vocação contemplativa. Desde menino deu de passar os dias na varanda, olhando para a serra. Tinham que lhe levar o almoço lá, não conseguiram que frequentasse o colégio.
Foto: Gabriel Junqueira
Tentaram algumas aulas particulares na varanda, mas ele não tirava os olhos da serra. A única vez que interagiu numa dessas aulas foi quando um professor de matemática, ao lhe propor uma equação, disse “suponhamos que A é igual a B”, ao que o Jorge retrucou “por que não dizemos então só A”. Até para levá-lo ao médico era preciso aproveitar um dia muito nublado.
E assim, chegando à idade adulta, ele foi dilapidando a fortuna da família, pois Jesus disse que olhássemos os lírios do campo, que não tinham roupa e eram esplendores de beleza e de alegria. A paisagem é fundamental na doutrina de Jesus, é o milagre criado por seu Pai. À medida que a paisagem acaba fica difícil ser cristão, donde ser cristão em Resende está complicado. De alguns locais de Campos Elíseos não se vê mais a Pedra Selada.
Ilustração de Guignard
A bonita fazenda do Castelo vai sendo sufocada por prédios. O saudoso e querido George Godoy, que morava ali, ainda mantinha, em seus últimos anos de vida entre nós, um pequeno curral onde, pela manhã, ordenhava duas ou três vacas procurando não levantar a vista para o entorno. Seus olhos iam das tetas ao balde, do balde ao cocho, do cocho aos capins da beira da cerca, e assim, ainda que um tanto cabisbaixo, ia mantendo a sua fé.
Gustavo Praça