Por Gustavo Praça - Parte 1
No final dos anos 70, quando comecei a morar no Alto Penedo, sozinho, ainda sem luz elétrica e água encanada, eu botava uma cadeira na varanda à noite para apreciar a exposição de insetos na parede, muito branca, caiada havia pouco. Os bichos vinham atraídos por ela e pela luz do lampião a querosene de manga longa – aqueles de vidro comprido, esbeltos como os pescoços das mulheres de Modigliani; lampiões que iluminavam mais do que os bojudinhos de carregar pela alça.
Surgia então imensa variedade de rendados de asas, lindos, barrocos. Difícil aceitar que a natureza chegasse àquilo por alguma função utilitária. Era muito desenho doido, era o despropósito, a arte. Não era possível que aquelas fantasias do baile de gala do Municipal, de dar inveja ao Clóvis Bornay, tivessem outra função que a de expor beleza. Como a cauda do pavão – onde a natureza parece ter sido machista, como também na juba do leão.
A gente vai se acostumando a dividir a casa com os bichos, estamos no meio da Mata Atlântica. Os passarinhos bicam meu cacho de bananas pendurado no alpendre bem perto da janela da cozinha onde tomo meu café. Um besouro entra pela janela e revoa minha cabeça à noite. Se fica quieto eu deixo dormir no cobertor; se perturba muito eu pego pelo cascão e jogo de volta pra fora. Cigarra eu jogo logo pra fora porque desperta a gente no meio da noite igual a uma doida.
Isso eu fazia antes de ter a gata, porque a gata dorme também na cama e enche os sacos do besouro e da cigarra até eles partirem; a gata é topo de cadeia, é uma oncinha, não deixa mais os ratos roerem as minhas roupas. Passarinho que se cuide com ela, morcego também. Os morcegos dão rasante frequentemente pela casa à noite quando esqueço de cobrir as bananas. Às vezes se pregam num canto do forro e cagam no chão. Curioso como o cocô deles é perfumado, acho que é porque são de espécie frugívera. Outro dia salvei um das garras da Pretinha.
Como a Preta é pequena, não dá conta dos gambás. Mas eu não me incomodo com o barulho deles, por mim podem habitar o forro tranquilo. Há pouco tirei um de lá mais por causa do cachorro, que dorme no tapete do meu quarto e começou a latir muito no meio da madrugada. Removi um cabo de parabólica por onde o bicho acessava o telhado e ele não voltou mais. Eu o tinha visto chegando um dia por ali, é incrível o equilíbrio dele.
O Brás, que estuda biologia, me disse que o gambá é um mamífero da família dos marsupiais, que têm uma bolsa na barriga onde carregam os filhotes quando bem pequenos, igual aos cangurus.Tomara que no caso de ter havido um ninho no forro a mãe tenha saído com a prole. Acho que sim, porque não teve cheiro de carniça depois.
O rio das Pedras passa no meu sítio, alugo uns chalezinhos na outra margem, e uma vez, recebendo um casal de hóspedes, abri a portinhola do fogão a lenha – daqueles de ferro e ágata que se usa muito no sul – e dentro do compartimento do forno havia uma família de gambás que provavelmente desceu pela chaminé. Eu não queria perder as diárias, falei que eles esperassem um instante que eu tiraria a família de lá, mas as moça disse: “não, não faça isso, pode atrapalhar o desenvolvimento dos filhotes; pode deixá-los aí, a gente não se incomoda…”
E durante o feriadão, quando me via, ela dava notícias: “eles estão bem, viu; os pequenos mamando que é uma beleza!”.
As pessoas em geral estão tendo mais ternura pelos bichos selvagens. Os passarinhos comem a ração da gata e os jacus a do cachorro. Vai virar tudo pet. Ontem mesmo uma hóspede que está quarentenada num chalé veio me chamar à noite, preocupada.
- Nosso gambá está pendurado numa viga do lado de fora do telhado… Será que a gente tem como ajudar ele a descer?
Semana que vem tem a continuação dessa história, ou seria estória ?