Cidade embutida
Flutuei num domingo sobre as ruas de uma pequena cidade mineira, pedalando ao lado do poeta Walt Whitman. As casas tinham cheiro de feijão refogado no alho, e um idoso numa soleira de porta sorria pra gente em vez de pedir que sorríssemos pra ele – como nos pedem as câmeras nas cidades um pouco maiores. O calçamento irregular nos massageava.
E passava um cavalo num terreno baldio, um camarada consertando um caminhão velho deitado embaixo do chassi – com dois garotinhos ao lado chutando uma bola que foi bater nele e ele praguejou – e muitas outras coisas boas se desdobravam, como a sequência de baixos de um violão de sete cordas numa seresta.
Paramos à sombra de uma jaqueira para o Walt reacender o seu palheiro. Ele saboreou a primeira fumaça e recitou um de seus versos: “por que haveria eu de querer ver Deus melhor do que vejo hoje?”
Nossas bicicletas não eram esportivas. A minha era uma phillips preta, do tipo que os antigos garrafeiros portugueses usavam; a do Walt, uma monark contrapedal. E não usávamos roupas especiais de lycra, nem capacete, nem tênis apropriado, nem aparelho que se prende ao peito para medir batidas do coração. Outra coisa boa era não precisarmos daquelas oitocentas pedaladas para vencer um metro numa subida. A cidade era toda plana, mas se houvesse rampa íngreme saltaríamos e empurraríamos as bicicletas.
Bicicleta Phillips década de 1950 - Foto: Internet
Eu disse ao Walt que um dia, quando eu fosse pintor, iria fazer um quadrinho com duas ou três bicicletas de “conservas” de estradas de terra, esses profissionais em extinção. Elas são equipadas com espelho retrovisor e farol, e no guidon têm um embornal branco com a marmita e uma garrafa pequena de café tampada com sabugo de milho; no porta-embrulhos vão amarradas uma foice e uma enxada, que se estendem por baixo do quadro e se projetam para trás como canos de descarga de guatambu. Está tudo ali: a comida, o trabalho, o transporte. E também o brinquedo: pedalar pela pele da Terra, pela anatomia de Gaya. Vou pintá-las encostadas naquela jaqueira. Ou duas delas rodando emparelhadas, com os camaradas conversando, ou ainda um homem pedalando com a mulher sentada no porta-embrulhos e a filhinha no quadro.
O Walt sugere uma com o pedal preso ao meio-fio da sossegada rua por onde pedalávamos, entre os bairros resendenses de Manejo e Alvorada, aquele miolo residencial que era a cidadezinha mineira a que me referi. As ruas ali, calçadas com blocos por entre os quais respira ainda algum capim, pedem o estacionamento de uma bicicleta sem marcha. Por elas ainda andam devagar o leite e o sossego, no intervalo entre o império do café e o do petróleo - este último cerca os quarteirões com pistas velozes, asfaltadas, de mão única, e ciclovias.
O israelense que escreveu o livro “Sapiens” sugere que a fase catadora/coletora talvez tenha sido a da maior integração entre humanidade e planeta, mas eu, num impulso bairrista, digo ao Walt que foi na cultura leiteira do vale do Paraíba (quando se acolhiam velhos em casa, doentes nas Santa Casas e almas nas capelas – como diria meu amigo Marcos) que mais nos aproximamos de viver com arte. E recito para ele os últimos versos de um poema meu: “As vacas sem nenhuma questão pendente / Solitária bailarina estática / A árvore / No alto do morro / Macio pasto / Paz na terra”.
Essas árvores que se impõem, e ficam no cucuruto das colinas para as vacas se sombrearem, são em geral madeiras de lei, muito frondosas, de variados gestos. O Walt questiona o fato de a bailarina estar solitária, o que indica a derrubada das outras árvores. Sim, mas levantando-se à vista vê-se, no alto da colina, o começo da mata, de onde corre para a pequena fazenda mineira “Uma aguinha tão clara / Que vem da grota vizinha / Numa bica de taquara”, conforme meu avô registrou, também em versos
E do sobrado de tal fazenda, a cavaleiro sobre o povoado, se avistam ruas de paralelepípedos, pedra delicada, artesanato que pede vassoura e não sopradores de folhas a gasolina. Ruas como essas aqui, da cidadezinha mineira embutida na cidade maior de Resende. Toda cidade grande tem cidades pequenas no seu organismo, um tempo dentro de outro. Eu e o Walt gostamos mais das cidades que vão sendo sufocadas no miolo, e por isso não gostamos da maneira como o tempo tem passado.
O tempo deveria passar rápido para se conseguir mais honestidade nas coisas sérias, mais justiça na distribuição da terra, mais respeito pela diversa integridade das pessoas, mas tinha que andar ralentado quanto à desintegração do que há de bom numa cultura, numa nação, para que não nos tornemos apêndices, almoçando hambúrgueres e uberizados, ou dormindo em gavetas. Os povos também têm direito à diversidade, não só os indivíduos, de modo que o planeta seja uma obra de arte.
Se não vive com arte, o homem rouba e oprime – digo eu ao Walt.
Ele me aponta o céu e afirma que está vendo passar por sobre as nuvens duas carroças equipadas com avançadíssimas mini-placas solares, transportando latões de leite, potes de ghee e muito legume fresco e orgânico; diz que o carroceiro é uma transexual negra de cigarro palheiro no canto da boca, mestre em azeitar talas e cocões de carros de bois de modo que as duas rodas cantem juntas, num dueto oitavado, além de comandar tropa de burro com grande competência.
E que Tonhão – como é conhecida no futurista povoado montanhês –, é malvista por alguns idealistas que não toleram a eventual presença da esguia negra nas missas das 19h aos domingos, posto que ela deveria buscar a transcendência apenas nos rituais de umbanda, nem sua opinião de que a transexualidade - que, em tese, poderia sugerir maior proveito nos amores -, não traz mais felicidade ao indivíduo, uma vez que a abrangência não é condição para a felicidade, ou a Graça, conforme costuma explicar.
Afirma também Tonhão que seria com prazer uma dona de casa criadora de vasta prole de filhos e agregados, ou uma fêmea fatal, caso a natureza a tivesse de tais formas vocacionado. Sim, a natureza nos determina muito, não dá para moldar o mundo exatamente à nossa feição; nossas verdades só podem ser humildes, costuma dizer.
E, conta nosso visionário versador, quando lhe perguntam se, afinal, é de direita ou de esquerda, a negra pondera que depende do significado atribuído a tais categorias, das pessoas que as representam, e das circunstâncias.
“Se tenho uma peça de cabiúna para o eixo mas ela está um pouco bichada, talvez fique melhor usando uma canela preta e dando outro ajuste” – exemplificou certa feita, recorrendo aos carros de bois.
“É o futuro!”, me garante o Walt, com a firmeza de quem acredita na mão invisível da poesia. Já quanto aos pés, diz o bardo norte-americano que no tempo vindouro não andarão mais escalavrados como os dos antigos colonos da roça, que levantavam às cinco da manhã para roçar pasto descalços, porque o novo é sempre o velho melhorado, em inédita volta da espiral do tempo.
GUSTAVO PRAÇA