Há uma mulher no romance “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel Garcia Marques, que não morre nunca, uma das muitas chamadas Ana Arcádia Buendia. Pela janela da cozinha de sua casa, no povoado de Macondo, ela vê a praça principal da cidade e vai acompanhando a vida social e política de seus netos, bisnetos, tataranetos. Através dos tempos assiste a comícios, conspirações, revoluções, sempre mexendo as panelas.
Só se altera quando algum descendente, em meio a um dos muitos golpes de Estado, enfileira os inimigos no muro da praça para serem executados. Aí, Ana Arcádia afasta um pouco as achas de lenha para não queimar o feijão, limpa as mãos no pano de prato, pega uma vara de marmelo que fica num canto da cozinha e vai para a praça dando varada na bunda dos poderosos de plantão, e gritando:
“Acabou! Acabou! Todo mundo pra casa! Tomar banho, escovar os dentes e deitar!”
Que cena bonita! É por essas e outras que a literatura é grande, talvez a mais profunda das ciências sociais, como acredita o escritor tcheco Milan Kundera. Ana Arcádia representa a alma coletiva de uma grande mãe, de um grande espírito que paira pelos tempos. Espírito adulto, a impor o bom senso sempre que este é sufocado pela infantilidade.
A infantilidade é o lado ruim do ser infantil. É quando o egoísmo exacerbado usa as ideias como pretexto. Quer que elas sejam mais do que o todo. Que elas formem um combo que justifique poder ilimitado para impor atalhos. Há pressa, há uma seta brilhante indicando a felicidade. Isso vai da reguladora mão invisível do mercado até ao novo homem que surgiria com novos modos de produção, passando por doutrinas espirituais que nos deixariam super fraternos. Tudo ideia. No entanto, como diz o Chico Buarque num samba, “a gente não tem cura”. Só tem mesmo remediação. “Curados”, passamos a ser outra coisa que não humanos.
E na remediação um personagem fundamental é a matriarca, que entra em cena para nos trazer à luz mais uma vez – uma substância que atravessa os tempos nos micro-estados familiares, um poder que paira sobre os uniformes, que acaba com a brincadeira dizendo: “Assim também não, meus filhos! Agora chega!” Ana Arcádia nos lembra que há fraternidade dentro de cada um - em linhas tortas, únicas, inesperadas - mas, por isso mesmo, fraternidade legitimamente humana, como não há nos uniformes e nos combos.
O mundo supera as barbaridades por causa de Ana Arcádia. Ela anda atualmente pelo Brasil dizendo aos mandatários: “assim também não, meus filhos, aí passou dos limites…” E aqui lembro do querido seu Costa, fundador do restaurante que leva seu nome, em Penedo. Ele me dizia assim: “Rapaz..., não me importo que se roube, não, mas não se pode roubar tanto...” Com certeza diria hoje também: “Não me importo que se seja boçal, não, mas não se pode ser tanto...”
Gustavo Praça