A placa com esse aviso aí do título, pintada rusticamente, foi pregada numa árvore bem no início da pequena estrada de terra sem saída perto de onde moro. Como é viela secundaríssima, não fica a mercê das roçadeiras e dos sopradores de folhas da prefeitura, de modo que os tons castanhos das folhas secas vão ornando suas margens, e as inflorescências de capins, trepadeiras vadias e o que mais seja de verde cacheado vão cobrindo os meio-fios. Uma cabeleira é mais bonita do que aquele repartido que se fazia nos cabelos quando éramos crianças: uma linha reta a partir da qual se penteava a franjinha só para um lado, bem assentada com brilhantina; nossas mães instalavam um meio-fio nas nossas cabeças.
Vou muito lá andar com meu cachorro, ainda mais agora na quarentena. Nesses chãos de terra algumas costelas da crosta do planeta ficam expostas e a gente pode ir tateando com os pés, o que além de prazeroso também é bom para a saúde, um do-in. Outra coisa importante nessa estradinha é o fato de ela não ter cachoeira, como indica a placa colocada por algum morador cansado de prestar o serviço informativo que a Prefeitura devia fazer melhor. Aqui no meu entorno tem duas cachoeiras muito procuradas, e onde tem cachoeira tem sempre muita gente, e muita gente é bom só pra comício, pra passeata, pra show. Quem mora perto de cachoeira vai ficando cansado do fascínio que ela exerce. É bonita, mas é como alguém resplandescente que ao entrar numa festa, ou numa live, anula tudo o que não seja seu resplendor, e aí se perde muita coisa; como alguém que fecha o comércio ao passar mexendo as cadeiras, como a “vizinha” do samba do Dorival Caymmi, e o comércio fechado é ruim porque na mata da cidade as lojas são a flora e a freguesia a fauna, e o pessoal precisa trabalhar.
Às vezes ela se torna só a imagem grandiloquente. O camarada desce do carro, olha, e diz à família: “está dada por vista, podemos ir”. É um pouco como o sujeito que vê o capital só como uma abstração numa offshore ou uma aplicação no mercado financeiro; não consegue pensá-lo como possibilidade de alavancar um empreendimento harmônico, ainda que pequeno. É o tamanho que ele vê: do dinheiro e do total de metros do despencar da água da cachoeira. É um glamour. Quando pediram ao Humberto Mauro para definir cinema ele disse “cinema é cachoeira”.
A pergunta que mais ouço por aqui é “onde é a cachoeira?” Tenho vontade de argumentar com a pessoa sobre a possibilidade de ela olhar outro trecho do rio que não a cachoeira, mas acabo deixando pra lá. Porque o rio descendo a Mantiqueira não é só o som da água mais próximo da pedra onde estamos sentados. Há muitos outros sons, de quedas de todos os tamanhos em diferentes distâncias, como cordas mais graves e mais agudas de uma orquestra; e ainda os instrumentos de sopro das cigarras, dos grilos, de intervenções de pios que parecem aleatórias mas são precisas. Os pequenos bichos devem ter noção da haemonia, lá na forma de consciência deles.
Junto com a música a pessoa pode apreciar o balanço das ramagens do samambaiaçu na brisa, as pequenas folhas que caem em rodopio e deslizam na água enquanto as borboletas ficam plainando, as pontas dos cipós finos nas corredeiras, os micro-jardins arranjados em cima de algumas pedras, com musgos e outras parasitas, que são a mata pontuada no meio do leito do rio, que o rio guarda no peito e que não se desfaz com as enchentes.
E o sol que dá brilho à água, e a chuva que festeja a água. E um pássaro que arremete em velocidade rasante acompanhando as curvas por entre as pedras – o susto no espetáculo! Animais que só existem por causa da mata que só existe por causa do rio que só existe por causa da mata que só existe por causa dos animais que a polinizam. Tá certo que eu moro perto e tenho tempo pra ver melhor o rio das Pedras, mas o Paulinho da Viola já nos explicou que o rio passa sempre em nossa vida, no caso dele, desde o desfile da Portela e do bairro de Madureira.