Acho que já tem uns 15 anos que o Narciso morreu. Foi encontrado pela manhã, na sua casa – o barraco do Narciso, como a gente dizia -, sentado numa cadeira. Analfabeto, inteligente, calado, mistura de negro e índio, educado que só um príncipe. Veio do Rio Grande do Norte para o Rio nos anos 70, empregou-se na companhia que loteou a parte alta de Penedo e acabou aqui, ajudando a abrir e conservar as estradas de terra.
Era principalmente um camarada muito sério, não ria a toa. E solitário. Se dava bem com as pessoas, era prestativo, mas o silêncio predominava nele, e o olhar indicava o quanto era intenso o seu trabalho interior. Por conta da solidão, tinha sempre um cachorro como companheiro. Um deles, o Sargento, quando morreu foi um problema, porque o Narciso entrou em depressão; se afeiçoara muito ao Sargento.
Mas o que quero contar é que houve uma época em que ele teve um porco que criou como cachorro. No começo puxava o porco pela coleira, e depois o bicho o seguia tranquilamente. Nesse tempo o Narciso costumava vir à minha casa aos domingos para ver Os Trapalhões na TV. O porco se deitava no quintal, perto da porta dos fundos, onde eu havia plantado uns pés de milho e um canteiro de alho, e ficava esperando sem estragar nada.
Pois bem: um dia o nosso amigo chega um pouco mais calibrado de pinga, esquece de ordenar ao porco para deitar-se do lado de fora, o porco entra na sala e se deita num canto. Eu e minha mulher nos entreolhamos, mas deixamos quieto. Tínhamos muito apreço pelo Narciso, ele estava com pouca condição de diálogo, e, afinal, o chão da nossa casa era de cimento liso, nem vermelhão tinha, não era grandes coisas.
Mas lá pelas tantas o porco se levanta e caga no meio da sala. Embora bêbado, o Narciso se deu conta de que a situação passara do limite. Levantou-se com dificuldade, expulsou o porco, desculpou-se, pediu um pano, limpou tudo, e depois foi para o quintal ter com seu companheiro. Nem falava muita coisa para o porco, só ficava de braços abertos, com um olhar de profunda reprovação e decepção.
Uma noite límpida de inverno, o céu estrelado, uns pés de milho no quintal, e um sujeito cambaleante se entendendo com um porco que o olhava com respeito. O tempo parou naquele instante e pintou um quadro, por perceber que ali havia qualquer coisa a mais do que só uma cena engraçada. Não é por acaso que a palavra “Graça” tem o sentido de gracejo e, ao mesmo tempo, o de transcendência, de dom sobrenatural, como bem observou o Guimarães Rosa.
Certos momentos vão além da lógica do dia a dia, e, assim, harmonizam com o mistério - o que foge ao entendimento e é o mais importante guia da vida. E tais momentos podem facilmente ser vistos como apenas ridículos, coisas de maluco. Enquanto o Narciso interagia com o porco no quintal, a TV, ligada dentro de casa, mostrava as atitudes “insensatas” do Renato Aragão, herdeiro daquele Carlitos, o Chaplin, que amava o mundo de forma tão cômica e ao mesmo tempo intensa.
E a memória me traz um outro dia, em que o Narciso me disse que não ligava para ser sozinho e não ter filhos. Ponderou que “criação de gente” era difícil porque custava muito pra prestar. De fato, um cavalo com dois anos já está prestando, e uma pessoa leva 18, 20 anos, e ainda tem que ver se presta. Mas como o Narciso era um pensador de respeito, botava sempre na balança os muitos lados de uma questão. E nesse dia, depois de ponderar mais um pouco calado, complementou a reflexão com o outro lado da moeda: “ mas também quando gente presta é uma beleza, não é não?”
O quadro poderia se chamar “Porco sob as estrelas”, e embaixo traria gravada a máxima do Narciso: “Gente custa muito pra prestar”.
Gustavo Praça