O policial batucava no cajon fazendo uma careta de dor porque estava com duas costelas quebradas, roxo de hematomas. O roxo pegava a metade do corpo certinho, e no rosto também só metade estava arroxeada, e aquele olho não abria. O cajon dele tinha um escudo da polícia civil colado, e o tamborim, que ele pegava de vez em quando para variar, tinha o mesmo escudo no couro.
Eu tentava tocar o cavaquinho e cantar com seriedade, mas não conseguia parar de sorrir por causa daquele cara sofrendo e repicando um tamborim. Devia estar engraçado para os que assistiam àquela dupla Alegria e Sofrimento, que eram o dono da pousada/camping – também ele policial, aposentado –, um casal de hóspedes e dois funcionários.
O policial arroxeado, que se chamava Peçanha, era bom na percussão, mas tinha um dos funcionários, muito chato, que ficava fazendo barulhos com a boca e batidas malabarísticas com as palmas das mãos no braços, atravessando o ritmo, e o Peçanha ficava com a cara mais feia ainda e me olhava expressando “essa porra desse cara estraga tudo…”
– Tu tá fora, Gilson!Tu tá fora! Pára e ouve!
– Tô fora nada! Eu sei bater samba! Não sei, carioca?
Embora eu seja mesmo carioca, digo sempre que sou de Penedo, de Resende, mas não adianta. E o pior é que eu não conseguia encarar o Gilson porque ele era muito parecido com o Pateta, amigo do Mickey, e eu ia começar a rir sem resolver a questão de ele estar ou não no ritmo.
– Ô abestado! Olhe pra mim, abestado! Lhe fiz uma pergunta: sei ou não sei tocar essa muléstia?
– Sabe.
– Mas me olhe!
O Peçanha tinha caído de um carro em movimento, conforme me contou mais tarde, mas não me explicou em que situação, e eu também não perguntei. Ele tinha muito orgulho de dizer que sua esposa, que estava em Brasília, era uma gostosa – e na ausência dele o funcionário que batucava com a boca, o Pateta, comentou que ele estava ali se recuperando de uma situação de corneamento, o que, em tese, confirmava o motivo de orgulho do Peçanha.
Quando cheguei a Canoa Quebrada naquela tarde - num verão pouco anterior à pandemia -, cansado e querendo armar a minha barraca, até gostei de perceber o clima policialesco daquele estabelecimento, porque na ocasião eu viajava sozinho e aquilo me dava uma sensação de proteção, mas num instante enjoei deles.
Acordei com o dia clareando, botei meu dinheiro maior em baixo do fundo da barraca, tomei café numa padaria e andei uns quatro quilômetros pela praia até a um povoado chamado Majorlândia, onde conversei um pouco com um outro idoso antes de voltar.
Os mares do nordeste, por causa das águas mais quentes, produzem muito sargaço – algas azuis, amarelas, vermelhas, pretas, cinzas – que vão se ajuntando nas beiras das praias. Têm umas micro-aves, de pernas muito finas, que dão corridinhas em bandos para bicar os mariscos frescos que ficam na areia úmida quando a onda se retrai, e voltam correndo para a areia firme quando a nova marola avança, e repetem o dia todo esse ganha-pão frenético.
Têm também os urubus que meditam parados no ar, azes do voo-livre, mestres zen que para darem mais abrangência ao espiritual descem de repente e bicam com fúria a carne dos peixes que apodrecem na areia. Tem as espumas secas que vão sendo levadas pelo vento e levantam um voo acanhado. Tem tudo isso junto com a música do mar ao fundo.
Outro dia ouvi alguém chamar o mar de “Amazônia Azul” – acho que foi numa rádio da Marinha, em João Pessoa. O mar é o dono do mundo. O maior, o mais antigo, o originário, o gerador e o que vai dar o fim, o que ruge grave, o que vai descarnando com a língua a pele dos continentes, construindo instalações de pedras incrustadas de conchas, de textura corroída como as casas dos cupins, paisagens de assustar crianças, estética do fim do mundo.
O monstro azul avisa que é bonito só por fora, só nas praias mansas, mas que pode e que vai engolir tudo e instaurar o absurdo absoluto de antes de nós, que como é absurdo sem gente não é absurdo.
E têm as hélices dos moinhos de vento. Canoa Quebrada está cercada por eles, que representam tão pouco no todo da nossa geração de energia, e que de nada vai adiantar representarem o maior percentual se a gente continuar a viver no consumo doido e caro da rua principal do povoado, que se chama Broadway e está cheia de estrangeiros que compraram grande parte do litoral do nordeste. Das vielas transversais da Broadway chega-se ás ruas mais pobres das famílias dos pescadores, um pessoal feliz, embora bem pudesse ter um pouco mais de dinheiro. Os moinhos de vento têm design moderno, mas o moderno que não distribui melhor o numerário é um moderno bobo.
Comi um PF na vila, fiquei olhando uns meninos jogarem futebol de salão na quadra de um colégio ao lado da praça e quando cheguei à pousada, no fim da tarde, o Peçanha estava exaltado, queria bater no Pateta porque o Pateta tinha dito que aquela metade roxa do corpo dele era a metade mulher dele. Eles tinham levado para lá mais uma meia dúzia de pessoas e as latas de cerveja iam ficando por todo canto, sempre com restos dentro.
Eu tomei banho e quando escureceu já estava na barraca com a lanterna na boca matando as muriçocas que tinham entrado. O Peçanha gritou do lado de fora:
– Ô carioca, pega o cavaco aí!
– Eu já vou dormir, Peçanha. E eu sou de Resende, de Penedo.
– Tu é um babaca, ô de Penedo!
Quando fui embora no dia seguinte, bem cedo, o Peçanha estava apagado numa espreguiçadeira da piscina, e o funcionário mais quieto disse que ele ia ficar uma fera porque alguém tinha levado o tamborim dele. Durante a noite alguém roubou o tamborim do policial que eu achava que poderia proteger o meu patrimônio, que era o meu cavaco e o meu dinheiro.
– Acorda ele… Leva ele com você… Ele é da sua banda – me disse o sacana do funcionário que ficava mais quieto.
Na camiseta do Peçanha estava escrito “Esse cabra sou eu”.