O PRAÇA É NOSSO - Um pequeno comerciante
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Publicado em 13/09/2021

Fotos: Gustavo Praça

 

“Tem que lidar com jeito porque ela é muito espirituosa”

Lembro exatamente dessa frase, dita à minha mãe por Joaquim Vicente, um mineiro de bigodões, na hora em que embolsou o dinheiro e me entregou as rédeas da Faceira, a égua que era meu presente de aniversário de 11 ou 12 anos, por aí, e que foi um dos seres que mais amei. O dito era perfeito para o caráter dela, assim como também o nome que já trazia.

Era de marcha picada, aquele andar em que o animal dá mais passos do que os objetivamente necessários, como na dança, e as patas traseiras pisavam tão próximas – uma elegância dela -  que as ferraduras não podiam ter um trisco sobrando na beirada do casco porque feriam a outra munheca. Quem a ferrava pra mim era o Sebastião Bernardo, que hoje dá nome à escolinha do Alto Penedo e que morava por ali. Faceira era tordilha – branco salpicado, meio sujo, e a crina e o rabo amarelavam nas pontas. E ficava linda com a pequena sela mexicana, tipo as dos cawboys, que meu primo Noelzinho me emprestara - era só imaginar a whinchester enfiada por baixo da perna esquerda.

Não se deixava pegar fácil no pasto, e isso para mim era – ainda é - um mistério. Porque todos os cavalos, com uma variação pequena do grau de dificuldade, se deixam pegar se a gente vem com o cabresto atrás das costas e a outra mão esticada com um pouco de sal, e dizendo um cá cá cá... Pois a Faceira, assim que via o pegador se mandava, já sabia do que se tratava. Tinha de ser acuada num canto de cerca, algumas vezes por duas ou três pessoas. Mas depois de pega a gente podia até sentar embaixo dela sem perigo algum – se fizesse as coisas devagar, sem assustar, porque a natureza dela era assustada. Um barulho maior no mato e ela ¨passarinhava” – movimento rápido de banda que pode derrubar o cavaleiro.

Por isso era impossível ir muito próximo à Dutra, o que me obrigava a obedecer o limite que minha mãe impunha a mim e a meu irmão: aquela rodovia de uma pista só e mão dupla, de sessenta anos atrás, de onde saía a estradinha de terra cheia de “costela de burro”, cercada de gado, currais, retiros e casinhas de colonos, que é hoje a avenidaTramujas Mader, com uma venda/armazém na esquina e um campo de futebol (um “campo de bola”, como se dizia) atrás. Ainda se respirava aqui o ar de uma grande fazenda, que envolvia o núcleo finlandês e as primeiras casas de veranistas.

Na altura de onde é hoje a Casa do Papai Noel havia um mata-burro e uma porteira. Mais acima, na curva em fica agora o mercado Netinho, outro conjunto desses, regulador da circulação animal. Na ponte em frente ao hotel Suarez (agora manilhada), mais um, sendo que ali a gente passava montado por dentro do rio Palmital. Eu soltava a rédea para a Faceira beber e era bom ficar olhando a água até a égua prosseguir por si, porque o tempo dela era sempre perfeito, como por exemplo na arte de se aproximar e se afastar pra gente abrir as porteiras pelo lado que elas têm que ser puxadas e que, se bobear e o animal for duro, podem pegar no nosso joelho.

Mas vamos à questão do pequeno comerciante. Como já fiz referência, meu irmão também era um cawboy nessa época. Sua égua chamava-se Rôla e tinha outro temperamento: animal meio traiçoeiro, que tentava morder quando se apertava a barrigueira, ou mesmo a perna de quem cavalgasse ao lado; dura de boca, de uma marcha andadeira (de “andadura”, no dito da roça), também macia mas, a meu ver, feia. E – como são as coisas... –  embora malígna, facílima de se pegar no pasto.

 

 

Pois bem: onde é hoje a Pousada Donna Rose movara o seu Ismar, que alugava cavalos em frente ao casarão colonial, único hotel nos anos 60 sem contar as casas dos finlandeses. A companhia que loteara a parte alta do Penedo comprara junto o casarão e ali  - Hotel Village D`itatiaia - recebia hóspedes aos quais tentava vender lotes. Eu e Rogério – meu irmão – acordávamos cedo nos fins de semana para chegarmos à casa de seu Ismar a tempo de ajudá-lo a arriar os animais e tocá-los pela estrada até ao hotel (que menino podia querer um brinquedo melhor...).

Meu irmão, sempre que podia, alugava também a Rôla. Já eu tinha tanto ciúme da Faceira que isso nem me passava pela cabeça; ninguém ia saber interagir com ela, entender ela. E eis que um belo dia minha mãe larga as ferramentinhas com que cuidava do jardim da casa para acudir uma senhora aos prantos, montada na Rôla.

“ Minha senhora! Por favor! Me ajude a descer desse cavalo! “

Depois de descansar na varanda e tomar um copo de água com açucar, ela explicou o acontecido:

“Imagine a senhora que eu estava com um grupo de amigos, inclusive o meu marido...” – e chorava. “ Nós alugamos uns cavalos para dar um passeio; faltava um cavalo, e um menino que estava com esse cavalo aí disse que alugava ele para mim, fez até um desconto. Minha senhora... de repente esse cavalo se separou do grupo e entrou por umas trilhas beirando uns precipícios (um atalho beirando o morro do seu Romeu por onde costumávamos voltar pra casa) e por nada desse mundo eu conseguia pará-lo; só consegui parar ele aqui, em frente ao portão da senhora...”

“A senhora fique sossegada” – confortou minha mãe – “ vamos descandar e tomar um cafezinho aqui com a gente. Depois o meu marido leva a senhora de carro no hotel”

“Mas e o cavalo?”

“A senhora pode deixar ele aí no portão mesmo, eu já amarrei a rédea dele. Eu conheço aquele menino, eu entrego a ele.”

 

PS: A ideia do evento "Fábrica de Sonhos" é boa, o local é que está errado, porque o nosso centrinho já é estrangulado. Tem gente pensando em fazer coisa parecida futuramente na área da Tramujas Mader, onde poderia haver até um parque permanente, com estrutura previamente organizada. Quem sabe poderia ampliar a área de atrações e desafogar o centro de Penedo?

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