O PRAÇA É NOSSO - Os Órfãos
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Publicado em 14/06/2021

    O poder público funciona no Brasil, antes de tudo, como empresa privada. O Sérgio Buarque de Holanda explica bem como a oligarquia rural, ao se transferir para o universo urbano, dá origem a uma casta que aparelha o Estado, sem qualquer satisfação ao populacho .  E quando gente não fidalga ascende à direção da “empresa” já se molda dentro do caldo dominante, que assimila tudo, até as vocações de estadistas. (o estadista é o artista da política, o que tem gosto em dar forma aos anseios comuns - e a arte não tem o negócio como primeira motivação, ela se guia pela busca da beleza e da harmonia).

        Estamos vendo hoje como a reação ao patrimonialismo exacerbado pode levar a “soluções” autoritárias, ao ataque a instituições que não nos transmitem confiança mas que são as que temos: ruim com elas, pior sem elas. Situação difícil, consequência perigosa desse quadro de desalento, de descrença no contrato social; um mato seco fácil de pegar fogo. Reflorestar é preciso, com reformas que aproximem povo e casta dirigente. A opção binária entre branco e preto não deve nos cegar para os muitos tons de cinza que dão origem à tragédia. Passado Bolsonaro, a dor aguda, estaremos ainda diante da doença crônica.

        Mas falemos de Itatiaia, motivo maior do título desta crônica. Aqui, em tese, o povo está no poder há muito, são pessoas de origem popular. Pois acabamos de ver a cúpula dirigente ser afastada por suspeita de corrupção. Não é novidade. Como não é novidade o decorrer do processo, que, via de regra, confirma as razões para o desalento: primeira instância, segunda instância, tribunal regional de recursos, STJ, Supremo, embargos infringentes, foro privilegiado, prisão só com processo trânsitado em julgado até o infinito, Gilmar Mendes, Dias Tófolli, o diabo...  

        E ainda a possibilidade de, após quase uma década de procrastinação, uma suprema autoridade dizer “ah... estamos constatando agora que aquele não era o foro certo para a questão... temos que começar tudo de novo...”. Até prescrever. (Lembra a história do batizado da cachorra, narrada por Ariano Suassuna no Auto da Compadecida. Diz lá o bispo: Ah.. a cachorrinha é do coronel Fulano?... Aquele que coordena tão bem o nosso esquema?... Por que não disse logo?... Deixa ver aqui nas escrituras... ah, pode batizar, sim; pode rezar em latim, sim...)

        De modo que o poder público é uma empresa muito atraente para o empreendedor que tem queda para o negócio. Uma empresa sem controle dos acionistas (sem compliance, como se diz hoje), uma empresa com “tudo dominado”. Daí a luta renhida, em todos os níveis da federação, pelo poder e pela manutenção do poder; uma luta que mina a democracia, aponta para o totalitarismo (e as ideologias ajudam bem como pré-texto). Ficamos diante de um trator que atropela e nivela o que se colocar à frente.

        A onda de emancipações de municípios, há alguns anos, foi, em grande parte, movida pela perspectiva dos bons negócios. Havia o pré- texto da emancipação. Quem vai ser contra se emancipar, ser “independente”?  Itatiaia fez parte, havia a Xerox, que recolhia uma fortuna de imposto, e o Penedo foi junto. Nossa ligação com Resende era fortíssima – é, até hoje – e por isso houve um casuísmo por conta do quê não fomos consultados, não pudemos votar. A alegação “legal” era qualquer coisa tipo o Penedo ser segundo distrito de Resende e estar constando na justiça eleitoral como terceiro... Não sei se era exatamente isso, mas algo desse nível de irrelevância.

        Ficamos então, os penedenses, órfãos de pai e mãe e entregues a um irmão menor, Itatiaia, formando um novo município sem tradição política, facilmente tomado por um  arrivismo que importou especialistas de fora. Estamos vendo os resultados. Penedo até  poderia requerer sua volta à Resende, dado o absurdo da proibição de seu voto na ocasião, mas não sei se isso seria o melhor caminho a esta altura, nem se haveria vontade e capacidade de mobilização. Talvez o melhor seja a união e o fortalecimento dos dois irmãos órfãos, traçando um destino mais digno, com mais participação e controle.

PS: Por vezes, a tragédia que é nossa história patrimonialista tem sua face cômica. Como o caso ocorrido há alguns anos num município da Mantiqueira muito ligado a nós. Deu-se que o prefeito recém eleito relutava em pagar os salários atrasados de uma parte dos funcionários, e, quando apertado por um grupo de cidadãos mais conscientes, argumentava o seguinte:

        “Eu não devo nada a eles...  eles não trabalharam pra mim...”

 

Gustavo Praça

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