Se ao menos ela abrisse alguma janela tudo transcorreria naturalmente. Mas não. Mantinha tudo fechado, e já estava na casinha há duas semanas. Como seria a cara dela? Foi a Lana que a recebeu numa noite de sexta-feira em que eu estava cantando na casa de chá que a Marie tinha aberto no hotel Pequena Suécia, tornada depois o Jazz Village, e que – como são as coisas... – no começo convivia com meu violão rastaquera. Com dois filhos pequenos e outro na barriga da Lana, eu estava precisando muito de dinheiro.
E fui dormir tranquilo porque a tal senhora tinha acertado três meses, adiantado e em dólar. A Lana me contou que ela chegara trazida por dois jovens estrangeiros muito bonitos. O marido falecera recentemente, e os dois jovens que a trouxeram eram amigos de um filho dela que morava na Alemanha. Ela precisava se refazer, ficar um pouco sozinha durante o luto da viuvez. E os amigos dos filhos haviam pesquisado e concluído que nosso sítio, na parte alta do Penedo, no meio da mata atlântica, perto das cachoeiras, era tudo o que ela precisava.
Nessa época, começo dos anos 90, eu tinha parado de fazer o primeiro jornal que tive em Resende, o “Pé da Serra”, e meu maior trabalho era com a criação dos filhos, o jardim do sítio, a manutenção das casinhas que construíramos e alugávamos. E, nos dias seguintes à chegada da dita senhora, em meio à minha varrição de folhas e reparos na pinguela, me incomodava ver as janelas dela todas fechadas. Será que passara mal? Via o vulto pelo vidro da cozinha e me tranquilizava.
Um dia, me vendo no jardim, entreabriu a porta e, com uma carta na mão, perguntou se eu faria o favor de colocá-la no correio. Cheguei a colocar três cartas para ela no decorrer de um mês. E lhe trazia as respostas, que chegavam na minha caixa postal, em Resende. Até que, um belo dia, ela entreabriu de novo a porta e disse que precisava dar um telefonema. Ela falava comigo sempre pela fresta da porta. Parecia que tinha tatuagens nas sobrancelhas, e um olhar inquieto; um tanto maligno, me parecia. Eu nunca tinha visto alguém tão parecido com uma bruxa.
A gente nesse tempo ainda não tinha telefone, e eu lhe disse que teria de levá-la de carro na casa de minha mãe, num outro ponto de Penedo. Ela disse que estava bem, mas que gostaria de ir à noite. Minha mãe, muito simpática e mais ou menos da idade dela, perguntou-lhe se ela era do Rio, onde havia estudado etc. Mas ela, friamente, desconversou, disse que talvez comprasse um terreno em Penedo, que aqui era lindo e tal, e foi direto ao telefone. O telefone ficava num quarto, e ela fechava a porta para falar.
Voltamos lá umas três vezes para ela ligar, e, na última, a minha mãe, que fingira ir ao banheiro, voltou para a sala muito aflita, me chamou num canto e disse que havia colado o ouvido na parede fina de madeira que ligava o quarto dela ao outro, do telefone, e que escutou a mulher dizer assim: “continuo mantendo a história de que tenho um filho na Alemanha”. Foi aí que eu e Lana começamos mesmo a ter medo.
E quando ela me deu a quarta carta para colocar no correio eu parei minha Variant na altura das Três Cachoeiras, numa beira da estradinha que ainda era de terra, abri e li. Era uma carta grande, endereçada certamente um dos rapazes que a deixaram em Penedo. E começava assim: “Fulano, pergunte ao Sicrano (o outro rapaz estrangeiro) quanto tempo ele acha que eu vou ficar enfiada no meio desse mato. O casal aqui já está desconfiado. Diga a ele que não quero acabar com a vida dele, mas preciso da presença dele aqui para um pequeno ritual”. Em outra passagem ela dizia: “Temos que ter sempre em mente o seguinte: primeiro: o momento em que juntos, naquele apartamento da Av. Paulista, tomamos a decisão que mudou o rumo de nossas vidas, e a necessidade de superarmos o carma negativo que isso nos traz nesse momento.” E ia por aí. Em outro trecho dizia que “vocês sabem que aqui ninguém pode saber da minha situação financeira”.
Voltei pra casa e disse a meus filhos, de seis e sete anos, para não atravessarem mais a pinguela porque a gente achava que a mulher lá do outro lado era maluca (quando eu pensava no “pequeno ritual” da carta dela, imaginava-a assando a Lila e o Afonsinho num espeto). Talvez devesse ter ido à polícia, mas o que fiz foi queimar a carta, que eu abrira de qualquer jeito, e pedir ajuda a meu amigo Kacá Versiani, o escultor, porque dali a dois dias eu teria de viajar com a Lila para um tratamento num hospital em Bauru. E ele ficou na nossa casa, dando cobertura e fazendo galanteios à nossa empregada, a Rô, que era uma jovem muito linda.
Quando voltei, eu e Lana fomos pressionando a bruxa para ela ir embora. Dizíamos que íamos precisar da casinha para minha sogra vir ajudar com o neném prestes a nascer, que devolveríamos parte do dinheiro adiantado, etc. Como ela afirmara na carta, já sabia que estávamos desconfiados, e, num dia em que nossa conversa foi um pouco mais áspera, atravessou a pinguela atrás da gente dizendo que era para ficarmos calmos que iria embora na manhã seguinte bem cedo. “Não precisam chamar a polícia” – era o que ficava subentendido.
Cumpriu o prometido. Saiu bem cedo arrastando uma mala pela estrada de terra até a venda do Tião Mineiro (hoje Mercado Dois Irmãos), que foi contratado para levá-la até à rodoviária e depois veio me cobrar a corrida, conforme instruções da suspeita. Ela deixou quase todas as suas roupas na casinha, inclusive um casaco de peles. A Lana quis que a gente desse tudo. A única mala que levou deveria estar cheia de dólares (“ninguém aqui pode saber minha situação financeira...”).
Nós achamos que ela matou o marido em conluio com os dois jovens estrangeiros; que deveria ser amante de um deles; que eles a largaram aqui prometendo buscá-la e raparam fora. Só não entendo como ela, sendo tão sagaz como aparentava, achou que ia viver feliz com o rapagão pelo resto dos dias. Passamos algum tempo com medo de que a turma voltasse para uma expedição punitiva. E o Kaká me zoava: “Ô Gustavo, ruim mesmo ia ser se naquele trecho da carta – “o casal aqui já está desconfiado” – ela completasse dizendo assim: “o marido, faço questão de matar eu mesma.”
Gustavo Praça